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MEMÓRIAS
DE UM CORPO NO ESPAÇO
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Hoje
foi mais um dia de tratamento do ouvido esquerdo. Está
muito melhor agora. Nem se compara com aqueles tempos díficeis,
quando o problema surgiu, após o retorno do espaço.
A hemorragia aparecia “do nada” e literalmente enchia
meus ouvidos. Foram três meses de tratamento intenso dos
sintomas e determinação das causas. No final, não
ficou certo se o problema foi relacionado com algum tipo de esforço
fisiológico resultante da missão espacial, ou simplesmente
uma coincidência disparada logo após o mesmo. O fato
é que finalmente melhorou, depois de muitas dúvidas
e remédios. Só de vez em quando o problema faz uma
pequena visita de surpresa, como nesses últimos dois dias.
O importante é que não houve “barotrauma”
e não afeta a minha condição de vôo.
Continuo, portanto, a disposição do país
para realizar outras missões espaciais!
Essa é a vida do tripulante. Essa é a vida de qualquer
astronauta profissional. Sabemos que o tipo de atividade é
extremamente prejudicial à saúde e que envolve riscos
altos de acidentes fatais. Contudo, essa é a nossa profissão,
nossa missão para com a humanidade. Essa massa crescente
de pessoas, que precisa de novas curas, melhores técnicas
de produção de alimento, produtos mais inteligentes
e sincronizados com a natureza, etc. Uma espécie que, caso
não se destrua em alguma guerra sem sentido, precisará,
em algum dia bem próximo, expandir seus limites e estabelecer
presença popular, com segurança, fora dos limites
do Planeta azul.
Astronautas são aqueles que abrem o caminho. Arriscam a
vida em máquinas que serão aperfeiçoadas,
mesmo a custa de tragédias, para no futuro transportarem
com absoluta segurança milhões de pessoas “rumo
ao espaço”. Realizamos experiências. Trabalhamos
ombro a ombro com os cientistas mais competentes na procura de
novos produtos e soluções nesse ambiente tão
maravilhoso, e ao mesmo tempo tão agressivo, da microgravidade.
Usamos nossos próprios corpos como parte dos experimentos.
Temos consequências fisiológicas. Arcamos com elas
após o retorno à terra.
Uma das primeiras coisas que aprendemos em uma missão espacial
é a nossa fragilidade com relação às
acelerações e às vibrações
causadas pela grande dinâmica necessária para que
o nosso foguete nos impulsione da plataforma de lançamento
até a altitude e velocidade necessárias na órbita.
O problema é ampliado durante a reentrada na atmosfera,
quando regressamos após concluirmos nosso trabalho no espaço.
A “carga g” pode atingir até 11 vezes a aceleração
da gravidade. É como ter de suportar um elefante sentado
no peito durante quase um minuto. Treinamos as técnicas
necessárias usando a famosa “centrífuga”,
que simula essas acelerações através do movimento
circular de uma cápsula.
Uma vez no espaço, nosso sistema vestibular, aquele que
nos dá equilíbrio e que tanto perturba aos que sofrem
de labirintite, nos testa para mantermos o alimento no estômago.
Desorientação espacial, mal estar, tontura, vômito,
são sintomas normais nos três primeiros dias.
A distribuição sanguínea também precisa
se adaptar à falta de gravidade. Nosso corpo, acostumado
a trabalhar com a força peso atuando verticalmente sobre
o sangue, empurrando-o para baixo, para as nossas pernas, na posição
normal (em pé), agora tem que responder à falta
dessa força. Como resultado, até que se adapte,
temos maior pressão sanguínea acima do peito, no
pescoço e na cabeça. Os pés ficam gelados.
A adaptação também leva uns três dias.
Nesse período, os batimentos cardíacos diminuem
o ritmo, o corpo reduz a quantidade de líquidos, urinamos
muito, ficamos desidratados, temos a pressão dos olhos
aumentada, dores de cabeça, e a sensação
de estarmos constantemente pendurados de cabeça para baixo.
O inimigo silencioso é a radiação. Fora da
proteção da atmosfera, ficamos submetidos a uma
carga radioativa muito elevada em relação ao que
temos em superfície aberta na Terra. Usamos dosímetros,
como os profissionais da área são obrigados por
lei. Os dias no espaço correspondem a anos de exposição
desses profissionais no seu trabalho usual. Nos tornamos, portanto,
rapidamente candidatos a problemas como câncer e infertilidade.
Nos ossos, a resposta vem em forma de uma “osteoporose induzida”.
Isso ocorre porque, no espaço, nossos ossos não
se recompõem normalmente como na Terra. A falta de gravidade
afeta esse processo de alguma forma. É como se o corpo
não sentisse a “pressão” em fazê-lo.
Tomar cálcio, nas condições de órbita,
não ajuda nada. O corpo recusa e pode até gerar
outros problemas, como cristais nos rins. A recuperação
da densidade óssea depois do vôo é lenta e
depende muito das características individuais. O condicionamento
físico maior, ou maior capacidade atlética, não
é sinônimo de menor perda no espaço ou melhor
recuperação no pós-vôo.
Por falar em condicionamento físico, tembém ocorre
uma deterioração da capacidade muscular, principalmente
dos grandes grupos inferiores. Tenta-se reduzir os efeitos através
de 2 a 3 horas de exercícios diários a bordo. Melhor
do que nada, mas o problema não é resolvido nem
de longe. É necessário um trabalho lento e cuidadoso
por meses após o vôo para a recuperação
da capacidade física.
Uma coisa “quase boa” é que “crescemos”
aproximadamente dois centímetros durante o tempo vivendo
na estação espacial, em microgravidade! Essa “expansão”
causa muitas dores musculares e desconforto nas costas a partir
do terceiro dia e prossegue durante a primeira semana no espaço.
Obviamente retornamos à estatura normal no regresso à
superfície do planeta!
Esses são alguns dos efeitos fisiológicos do vôo
espacial. A nossa resistência psicológica também
é colocada a prova durante o treinamento, no vôo
e principalmente depois do regresso. São enormes cargas
de stress sobre o astronauta, sua família e amigos próximos.
Esse tema, pela sua complexidade, exige um tratamento e discussão
mais detalhados e específicos. Porém, não
se preocupe com isso...exceto se você tiver que ficar repetindo
a todo instante para você mesmo “eu sou normal!”.
Realmente, o vôo espacial, por todo o seu esplendor e pelo
pioneirismo e coragem necessários, tem todo um “glamour”,
uma “mágica de sonhos”, um mistério,
que o envolve completamente, como os gases iluminados pelos holofotes
ao redor do foguete preparado antes da decolagem na noite. Ele
certamente tem aspectos maravilhosos e inesquecíveis, muito
acima dos limites e da compreensão humanos. Porém,
o corpo paga o preço.
*Lesão no ouvido resultante
de variações de pressão do ambiente externo.
Marcos
Pontes é astronauta, mestre em engenharia de sistemas,
engenheiro aeronáutico, piloto de provas de aeronaves,
consultor, empresário e colunista. Atualmente o astronauta
continua a disposição do Programa Espacial Brasileiro,
participando e assessorando nos seguintes projetos: participação
brasileira na Estação Espacial Internacional, Programa
Microgravidade, AEB Escola, Veículo Lançador de
Satélites, desenvolvimento de foguetes suborbitais e Satélite
SARA. No setor privado, Pontes atua como consultor técnico
e gerencial junto a empresas de renome, com ênfase nas áreas
de segurança do trabalho, gerenciamento de riscos, motivação
e gerenciamento de projetos.
A
reprodução deste artigo é permitida
desde que seja na íntegra e que seja citada a fonte:
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