MEMÓRIAS DE UM CORPO NO ESPAÇO

Marcos Pontes
25/02/2007

Hoje foi mais um dia de tratamento do ouvido esquerdo. Está muito melhor agora. Nem se compara com aqueles tempos díficeis, quando o problema surgiu, após o retorno do espaço. A hemorragia aparecia “do nada” e literalmente enchia meus ouvidos. Foram três meses de tratamento intenso dos sintomas e determinação das causas. No final, não ficou certo se o problema foi relacionado com algum tipo de esforço fisiológico resultante da missão espacial, ou simplesmente uma coincidência disparada logo após o mesmo. O fato é que finalmente melhorou, depois de muitas dúvidas e remédios. Só de vez em quando o problema faz uma pequena visita de surpresa, como nesses últimos dois dias. O importante é que não houve “barotrauma” e não afeta a minha condição de vôo. Continuo, portanto, a disposição do país para realizar outras missões espaciais!
Essa é a vida do tripulante. Essa é a vida de qualquer astronauta profissional. Sabemos que o tipo de atividade é extremamente prejudicial à saúde e que envolve riscos altos de acidentes fatais. Contudo, essa é a nossa profissão, nossa missão para com a humanidade. Essa massa crescente de pessoas, que precisa de novas curas, melhores técnicas de produção de alimento, produtos mais inteligentes e sincronizados com a natureza, etc. Uma espécie que, caso não se destrua em alguma guerra sem sentido, precisará, em algum dia bem próximo, expandir seus limites e estabelecer presença popular, com segurança, fora dos limites do Planeta azul.
Astronautas são aqueles que abrem o caminho. Arriscam a vida em máquinas que serão aperfeiçoadas, mesmo a custa de tragédias, para no futuro transportarem com absoluta segurança milhões de pessoas “rumo ao espaço”. Realizamos experiências. Trabalhamos ombro a ombro com os cientistas mais competentes na procura de novos produtos e soluções nesse ambiente tão maravilhoso, e ao mesmo tempo tão agressivo, da microgravidade. Usamos nossos próprios corpos como parte dos experimentos. Temos consequências fisiológicas. Arcamos com elas após o retorno à terra.
Uma das primeiras coisas que aprendemos em uma missão espacial é a nossa fragilidade com relação às acelerações e às vibrações causadas pela grande dinâmica necessária para que o nosso foguete nos impulsione da plataforma de lançamento até a altitude e velocidade necessárias na órbita. O problema é ampliado durante a reentrada na atmosfera, quando regressamos após concluirmos nosso trabalho no espaço. A “carga g” pode atingir até 11 vezes a aceleração da gravidade. É como ter de suportar um elefante sentado no peito durante quase um minuto. Treinamos as técnicas necessárias usando a famosa “centrífuga”, que simula essas acelerações através do movimento circular de uma cápsula.
Uma vez no espaço, nosso sistema vestibular, aquele que nos dá equilíbrio e que tanto perturba aos que sofrem de labirintite, nos testa para mantermos o alimento no estômago. Desorientação espacial, mal estar, tontura, vômito, são sintomas normais nos três primeiros dias.
A distribuição sanguínea também precisa se adaptar à falta de gravidade. Nosso corpo, acostumado a trabalhar com a força peso atuando verticalmente sobre o sangue, empurrando-o para baixo, para as nossas pernas, na posição normal (em pé), agora tem que responder à falta dessa força. Como resultado, até que se adapte, temos maior pressão sanguínea acima do peito, no pescoço e na cabeça. Os pés ficam gelados. A adaptação também leva uns três dias. Nesse período, os batimentos cardíacos diminuem o ritmo, o corpo reduz a quantidade de líquidos, urinamos muito, ficamos desidratados, temos a pressão dos olhos aumentada, dores de cabeça, e a sensação de estarmos constantemente pendurados de cabeça para baixo.
O inimigo silencioso é a radiação. Fora da proteção da atmosfera, ficamos submetidos a uma carga radioativa muito elevada em relação ao que temos em superfície aberta na Terra. Usamos dosímetros, como os profissionais da área são obrigados por lei. Os dias no espaço correspondem a anos de exposição desses profissionais no seu trabalho usual. Nos tornamos, portanto, rapidamente candidatos a problemas como câncer e infertilidade.
Nos ossos, a resposta vem em forma de uma “osteoporose induzida”. Isso ocorre porque, no espaço, nossos ossos não se recompõem normalmente como na Terra. A falta de gravidade afeta esse processo de alguma forma. É como se o corpo não sentisse a “pressão” em fazê-lo. Tomar cálcio, nas condições de órbita, não ajuda nada. O corpo recusa e pode até gerar outros problemas, como cristais nos rins. A recuperação da densidade óssea depois do vôo é lenta e depende muito das características individuais. O condicionamento físico maior, ou maior capacidade atlética, não é sinônimo de menor perda no espaço ou melhor recuperação no pós-vôo.
Por falar em condicionamento físico, tembém ocorre uma deterioração da capacidade muscular, principalmente dos grandes grupos inferiores. Tenta-se reduzir os efeitos através de 2 a 3 horas de exercícios diários a bordo. Melhor do que nada, mas o problema não é resolvido nem de longe. É necessário um trabalho lento e cuidadoso por meses após o vôo para a recuperação da capacidade física.
Uma coisa “quase boa” é que “crescemos” aproximadamente dois centímetros durante o tempo vivendo na estação espacial, em microgravidade! Essa “expansão” causa muitas dores musculares e desconforto nas costas a partir do terceiro dia e prossegue durante a primeira semana no espaço. Obviamente retornamos à estatura normal no regresso à superfície do planeta!
Esses são alguns dos efeitos fisiológicos do vôo espacial. A nossa resistência psicológica também é colocada a prova durante o treinamento, no vôo e principalmente depois do regresso. São enormes cargas de stress sobre o astronauta, sua família e amigos próximos. Esse tema, pela sua complexidade, exige um tratamento e discussão mais detalhados e específicos. Porém, não se preocupe com isso...exceto se você tiver que ficar repetindo a todo instante para você mesmo “eu sou normal!”.
Realmente, o vôo espacial, por todo o seu esplendor e pelo pioneirismo e coragem necessários, tem todo um “glamour”, uma “mágica de sonhos”, um mistério, que o envolve completamente, como os gases iluminados pelos holofotes ao redor do foguete preparado antes da decolagem na noite. Ele certamente tem aspectos maravilhosos e inesquecíveis, muito acima dos limites e da compreensão humanos. Porém, o corpo paga o preço.

*Lesão no ouvido resultante de variações de pressão do ambiente externo.


Marcos Pontes é astronauta, mestre em engenharia de sistemas, engenheiro aeronáutico, piloto de provas de aeronaves, consultor, empresário e colunista. Atualmente o astronauta continua a disposição do Programa Espacial Brasileiro, participando e assessorando nos seguintes projetos: participação brasileira na Estação Espacial Internacional, Programa Microgravidade, AEB Escola, Veículo Lançador de Satélites, desenvolvimento de foguetes suborbitais e Satélite SARA. No setor privado, Pontes atua como consultor técnico e gerencial junto a empresas de renome, com ênfase nas áreas de segurança do trabalho, gerenciamento de riscos, motivação e gerenciamento de projetos.

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