Meu pai dizia uma coisa interessante: não gaste energia
inutilmente tentando representar um personagem como se fosse
um ator. Concentre suas energias no seu objetivo e seja você
mesmo, sempre.
Essa dica simples foi uma das coisas mais importantes em momentos
críticos da minha vida envolvendo pessoas hierarquicamente
superiores ou inferiores. Na verdade, não existem pessoas
“superiores” ou “inferiores”. Isso
tudo é criação de nossa mente ou condição
temporária da sociedade. Todos são igualmente
importantes.
Junho de 1998...última fase do exame de seleção
de astronautas na Agência Espacial Brasileira, em Brasília.
Nós, candidatos, estávamos tensos e nervosos
na expectativa dos exames e resultados. Já havíamos
passado pelas duas primeiras fases. Restaram apenas cinco
de nós. O teste final seria uma entrevista, individual,
em inglês, com representantes de várias entidades
de peso como NASA, Academia Brasileira de Ciências,
etc, para testar nossas qualificações pessoais
e profissionais para representar 180 milhões de pessoas
em um projeto de enorme visibilidade e vulto internacional.
Naquele dia, um de nós seria “o escolhido”.
Aguardamos a chamada em uma sala pequena com sofás,
revistas, cafezinhos e olhares perdidos. Cada entrevista durava
cerca de meia hora. Fui o terceiro a ser chamado. Ao retornar,
os dois primeiros usaram respostas monosilábicas para
as nossas perguntas famintas sobre algo que acalmasse aquele
“frio na barriga”.
Chegou a minha vez! Caminhei pelo corredor acompanhado por
alguém que não me lembro, que apontou a porta
e desejou boa sorte. Ao longo do corredor eu pensava respostas
inteligentes. Todas esquecidas no momento em que abri a porta
e olhei o cenário que me aguardava lá dentro.
Uma mesa enorme com muitas cadeiras ocupadas por supergênios.
Certamente todos sabiam muito mais do que eu...sobre todos
os assuntos do mundo. Sérios e concentrados nos papéis
e anotações sobre a mesa. O silêncio era
marcante. Além do meu próprio coração,
eu podia ouvir as folhas de papel virando quando entrei. Alguns
levantaram a vista, outros, os óculos e alguns me ignoraram
e continuaram a olhar para os papéis. Engoli a tensão
seca e me sentei numa cadeira. Parecia mais baixa do que as
outras. Olhei de um lado a outro da mesa. “O que estariam
pensando? O que querem de mim?”
Lembrei de meu pai e de suas palavras: “seja você
mesmo”. Meus pensamentos foram interrompidos pelas palavras
de introdução. Começaram as perguntas.
Respondi conforme meus conhecimentos. Em certo momento, o
chefe de seleção de astronautas da NASA, o Dr.
Duane Ross, disse: “Marcos, fale sobre a sua vida.”
Achei a pergunta um tanto “aberta”. Comecei a
pensar uma resposta baseada no currículo profissional.
Antes de falar, notei que os papéis a sua frente eram
exatamente o meu currículo. Ora, eles já tinham
as informações! Para que repetir? Resolvi falar
da “pessoa Marcos”. Falei sobre Bauru, sobre meus
pais, do meu orgulho de sua luta de vida, do tempo de criança,
da minha emoção no parto do meu filho Fábio,
que segurei na palma da mão ainda com o cordão
umbilical. Falei das coisas da vida, do sentimento humano,
que transformam cada pessoa em um ser especial, único.
De repente, uma coisa estranha aconteceu. A mesa começou,
em minha mente, a diminuir, a minha cadeira a subir até
ficar no nível dos outros, as pessoas já não
pareciam tão superiores e assustadoras. Olhavam para
mim como uma pessoa, como elas.
No momento em que falei de mim “como pessoa”,
criei uma ligação verdadeira com aquelas outras.
A mesma ligação que permitiu, como seres humanos,
que nos uníssemos para nos proteger e dominar o planeta.
Reconhecer a importância de cada um como indivíduo
para o sucesso do grupo.
Falei por cerca de 22 minutos, só naquela questão.
Terminei, agradeci, levantei, despedi, sai.
No corredor, pensava sobre meu pai. “Como ele sabia
disso?”
Cheguei à sala dos candidatos. Já não
havia frio na barriga. Apenas as suas perguntas famintas.
Respondi da mesma forma: “sim”.
Marcos
Pontes
Colunista,
professor e primeiro astronauta profissional lusófono
a orbitar o planeta, de família humilde, começou
como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP),
para se tornar oficial aviador da Força Aérea
Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder
de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo
Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA),
piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica
e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado
pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA). |