Cartinha do Pedro no Ano Novo

Marcos Pontes
31/12/2008

Meu nome é Pedro. Tenho 9 anos e gosto de ver TV. Sou brasileiro. Ainda não sei o que vou ser quando crescer. Isto é, se eu crescer, pois a TV disse que tem muitos perigos por aí. Além do mais, talvez o mundo acabe em 2012. A TV disse isso também. Espero que eu não sinta muita dor. Outro dia acordei com gripe. O papai me levou à farmácia. Disseram que a injeção não ia doer, mas doeu muito. O Natal já passou. Que pena. Gosto de ver as propagandas na TV. Todos parecem tão felizes. Tudo é tão bonito. Pedi um colete à prova de balas e um capacete de presente. A TV disse que estão matando crianças na rua com balas perdidas, ou com policiais atirando nos carros das mamães porque as confundem com bandidos. Estranho, porque a mamãe nem parece com os bandidos que eu vejo na TV. Eles são de tipos diferentes, alguns de cara toda deformada, outros de terno, outros parecem até normais, mas nenhum parece com a mamãe. Mas, em todo caso, pedi o colete. Ganhei um carrinho de controle remoto. O papai disse que vai brincar comigo quando tiver tempo. Espero que isso aconteça algum dia no ano que vem. Ele e a mamãe trabalham muito. Eu vou à escola com a babá e assisto à TV. Tem programas legais, e você aprende muita coisa útil. Tem um deles que tem uma casa grande onde colocam uma porção de pessoas dentro. Aí essas pessoas nos mostram como é a maneira correta de se comportar em diversas situações. Minha mãe gosta de assistir. Às vezes ela usa o que aprendeu quando fica brava com meu pai. Eu estou aprendendo também. Agora, os programas que eu mais gosto são os programas de notícias. Eles mostram o que acontece no mundo todo. Coisas boas e coisas ruins. Pena que quase nunca acontece alguma coisa boa. Acho que o mundo é ruim. Mamãe diz que eu tenho que ser bom. Mas eu nunca vejo pessoas boas na TV. Só aparecem pessoas ruins. Elas se dão bem na maioria das vezes. Outras vezes se dão mal. Mas acho que só sobrevivem as pessoas ruins nesse mundo. Se eu for bom, acho que não terei chance de sobreviver. Minha mãe está errada. A TV mostra a realidade. Sou pequeno, mas ainda tenho tempo de aprender a ser ruim, para poder sobreviver no mundo que eu vejo na TV. Tem alguns programas infantis também, como desenhos, Xuxa e o Sítio do pica-pau amarelo. Mas a gente vê logo que estão mentindo para a gente. As novelas, que são um retrato da vida cotidiana, são sempre diferentes. Os programas infantis são bobinhos. Aqui em casa tem internet também. Eu aproveito que meus pais saem todo dia e fico vendo coisas na internet também. A babá também gosta de ver TV. Ela fica na TV e eu na internet depois da escola. São tantas coisas, que eu até fico perdido. Por exemplo, minha mãe acha que eu não sei nada sobre sexo. Mas tem tudo na internet. Basta colocar a palavra sexo na pesquisa. Já aprendi tudo o que eu preciso saber sobre isso. Todas as posições e como as mulheres gostam de ser tratadas. No começo, achei meio estranho e nojento todas aquelas coisas que elas gostam de fazer. Agora acho legal. Quando eu for grande, vou fazer igual. Só não decidi ainda se quero ficar com homem, com mulher ou com os dois. Mas tudo parece legal. Dá um friozinho bom na barriga quando vejo o que fazem. Outro dia papai chegou mais cedo e me pegou vendo uma foto na internet. Ele ficou bravo comigo e disse que aquilo era só para gente grande. Como eu vou ser gente grande um dia, eu achei melhor aprender tudo agora, enquanto tenho tempo depois da escola. Eles, meus pais, não têm mais tempo para aprender nada. Só que agora, como sei que ficam bravos, tenho que fazer tudo escondido. Eles acham que eu não sei de nada. Mas eu sei de tudo. Eu vejo na TV, na internet, etc.

O ano está acabando. Eu passei de ano na escola. Não foi difícil. A professora disse que não podia repetir ninguém. Não gosto muito de estudar. Minha escola é feia e os professores ganham mal. Meus amigos dizem, e eu confirmo na TV, que se você estudar, tem que trabalhar mais para ganhar dinheiro e ser chefe das pessoas. Além do mais, se você não estudar, você pode ganhar bolsas. Elas ajudam as pessoas que não tem estudo, e por isso não podem trabalhar. Principalmente se você tiver muitos filhos. Acho que ganhar bolsa é mais fácil do que trabalhar. Então, não vejo muito sentido em trabalhar. A TV quase nunca mostra as pessoas estudadas felizes. Estão sempre preocupadas e com caras bravas. Papai diz que estudar é importante para que a gente possa ganhar dinheiro e comprar as coisas, como casas, carros, fazendas, etc. Mas a TV mostra que você também pode simplesmente tomar as coisas de outras pessoas que tem muito e ficar para você. Isso é permitido. Aí é um ponto que eu fico confuso, pois outro dia, indo para a escola, eu vi a polícia prendendo um menino (um pouco mais velho do eu) que tinha roubado uma mortadela da padaria do seu José, na esquina aqui de casa. Estranho isso. A TV mostra muitas pessoas que quebram coisas no Congresso, invadem fazendas, empresas, etc, e dizem que isso é direito do cidadão. Eu não sei como se dividem os cidadãos, mas eu prefiro ser do grupo que tem mais direitos. Ainda não sei como entrar para esse grupo, mas um dia eu vou crescer e "levar vantagem em tudo" também (eu gostava daquela propaganda!). Minha mãe disse que todos são iguais perante a lei e Deus. Mas meu amigo da escola disse que ele queria ser negro, índio e gay, assim ele poderia entrar na universidade mais fácil, arranjar emprego mais depressa e ainda poderia ganhar muitas terras. Na verdade, acho que ele fala isso porque ele fica com medo de ser discriminado na vida, já que ele é loiro e muito pobre. Aí eu falo para ele o que a minha mãe diz (todos são iguais). Ele responde dizendo que, se fosse assim, toda e qualquer palavra que rotula classes, raças, religião ou sexo, nunca deveria constar do texto de absolutamente nenhuma lei. Seria suficiente apenas usar "pessoa" (todos são iguais). Eu não conheço das leis. Fico quieto. Vou perguntar para a mamãe, ou verei a resposta na TV.

Bem, mas eu acho que já falei demais sobre mim. O ano de 2008 foi um ano cheio de coisas interessantes na TV, na internet, etc. Aprendi muitas coisas úteis para a minha vida, e espero que os filhos dos senhores também tenham aprendido. Espero que o ano de 2009 seja muito bom para todos. Eu até já sei o que vou pedir de Natal, em 2009: uma televisão nova e um paraquedas, no caso de alguém me jogar pela janela do prédio!
Ah, tem mais, eu espero também que os meus pais possam ficar mais tempo comigo! Aliás, se vocês tiverem filhos, fiquem mais tempo com eles também. Assim, eles não precisaram aprender tudo na TV ou na internet.

Meu nome é Pedro. Tenho 9 anos. Sou brasileiro.

FELIZ ANO NOVO!! Tchau!

Marcos Pontes
Colunista, conferencista, pesquisador, professor e primeiro astronauta profissional lusófono a orbitar o planeta, de família humilde, começou como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP), para se tornar oficial aviador da Força Aérea Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA).
A reprodução deste artigo é permitida desde que seja na íntegra e que seja citada a fonte: www.marcospontes.net